Moçambique Fase III (Bilene – Manhiça)

Acordei…

Diante mim, a magnifica vista da lagoa do Bilene.

Àquela hora, as águas azul-marinho ainda não sofriam influência das aragens características dos últimos dias.

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O Sol entrava na minha manhã pelo lado esquerdo, sinal que eu estava virado para Sul. À minha frente podia ver lá no longe, a espuma das ondas do Oceano que chocavam contra a língua de areia e que faziam a separação entre a lagoa e o Índico.

Apesar de ainda estar um pouco fresco àquela hora da manhã, parecia-me ser um bom dia para iniciar a penúltima etapa até Maputo.

Por seu lado, o sossego e a calma que pairavam naquele cenário, apelava à minha permanência no Bilene.

Por alguns minutos mantive-me no limbo entre a decisão de partir ou ficar.

Refugiei-me numa máxima que trazia comigo desde a minha partida de Luana, “é melhor comer, porque com a barriga cheia a cabeça pensa melhor”… Fui tomar o pequeno-almoço.

Não seria necessário chegar a metade do pequeno-almoço para conseguir chegar a um veredicto.

Iria arrancar para Manhiça!

Afinal de contas, ficar mais um dia seria apenas um adiar de uma decisão que tinha que ser tomada.

Já no meu quarto, verifiquei o estado do pneu traseiro. Estava tudo OK.

Contudo, e por incrível que parecesse, enquanto arrumava a minha tralha nas malas da bicicleta, o meu pneu traseiro fez “puffff” e esvaziou completamente.

Não foi algo que me agradasse aos ouvidos nem às vistas, principalmente porque veio-me à memória as dezenas de furos “inexplicáveis” que eu havia sofrido em Moçambique e também toda a saga com a roda traseira.

Se fosse noutras alturas, possivelmente teria arrancado o pneu à dentada.

Enchi-me de paciência e coloquei mão à obra. Depois de desmontar o pneu, encontrei o furo.

Era no lado interno da câmara-de-ar e tinha o formato de um pequeno corte… tal como as “centenas” de furos que me massacraram a cabeça ao longo dos últimos 3.500Kms.

Não podia acreditar que houvesse alguma coisa a cortar a câmara-de-ar por dentro do aro, tal como por exemplo o (outro) aro estalado.

Realizei o (conhecido) ritual de verificar o aro, o interior do pneu e a superfície da câmara-de-ar, mm2 por mm2.

Nada! Não encontrei nada que pudesse ter causado o corte no pneu… situação esta que para mim era uma espécie de dejá vu

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Remendei o pneu e em poucos minutos coloquei-o no aro da bicicleta. Enchi o pneu de ar e aguardei alguns segundos… Estava operacional.

Coloquei a bicicleta de pé para arrumar o resto da minha bagagem.

10 Segundos depois, ouço “psssssss”… o pneu vazara outra vez!

Desmontei a roda pela segunda vez e verifiquei que o remendo descolara… tal como seria de esperar, devido ao spray reparador que eu havia injectado na câmara-de-ar na noite anterior.

A solução passava agora por uma câmara-de-ar nova, a última que possuía comigo.

Já passavam das 10h00 quando iniciei a etapa até Manhiça.

Pela frente teria 33Kms de estrada secundária para depois pedalar mais 70Kms ao longo da Estrada Nacional Nº1 em direcção a Maputo.

Pedalava tranquilamente, com um choro interior por ser o final da minha Epopeia. De todos os obstáculos ultrapassados ao longo da viagem, havia apenas um que eu não havia conseguido vencer…

… O de adiar o final deste “passeio” de bicicleta entre Luanda e Maputo.

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Agora não havia nada a fazer. Já me tinha mentalizado que a viagem teria que acabar um dia. Neste aspecto, eu tinha “atirado a toalha ao chão” em sinal de lutador derrotado…

De momento, cumpria apenas calendário para percorrer os últimos quilómetros até à Capital Moçambicana… e forçava-me para manter a cabeça erguida, pois afinal de contas o objectivo estava praticamente conseguido.

A paisagem há muito que deixara de ser coqueiros e palmeiras. Os baixios verdejantes da zona de Xai-Xai também haviam sumido. Voltava o mato de baixa estatura, ainda semi-verde e que aguardava o início da época das chuvas.

A temperatura ia subindo à medida que o Astro Rei escalava as horas do dia. Por seu lado, o vento também ia dando um ar da sua graça, refrescando um pouco aqueles que pedalavam debaixo do Sol.

Começavam a ser cada vez mais frequentes os sinais que a roda (engrenagem) tripla da bicicleta, não aguentaria muito mais tempo. A corrente saltava cada vez com mais frequência e facilidade, impedindo-me de colocar potência nos pedais de um modo impulsivo. Era forçado a fazer uma aceleração progressiva, cada vez que quisesse aumentar a velocidade da bicicleta, mesmo que este aumento fosse mínimo.

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Nos momentos de paz concedidos pela minha corrente e respectivas cremalheiras, a minha mente evadia-se, perdendo-se em memórias dos últimos 167 dias assim como dos dias precedentes ao início da viagem.

Tinha constantemente que puxar o pensamento para realidades mais terrenas de modo a evitar uma “martirização” psicológica que corroía-me por dentro.

Com 33Kms percorridos, chego a Macia pouco depois das 12h00. Macia era uma vila adjacente à Estrada Nacional Nº1 e que era cortada pela estrada proveniente do Bilene.

Apesar de ter pouco tempo de estrada, o meu estômago já havia iniciado a sua comunicação com o meu cérebro referindo sinais de vácuo.

Parei no “Restaurante São Cristóvão e Bar”, que aparentava ser (ter sido) o ponto de apoio às bombas de combustível (que outrora) se situavam mesmo na sua frente.

Colmatei o meu estômago com um prego no pão e umas Coca-Cola’s, para pouco depois regressar à estrada rumo a Maputo.

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Acreditava cada vez com mais veemência que os dias de descanso no Bilene, haviam prejudicado a performance da minha bicicleta.

Em primeiro lugar, o pneu que furou sozinho dentro do quarto. Em segundo lugar o elevado desgaste na cremalheira tripla que já não me deixava pedalar sem que ocasionalmente, rebentasse com os joelhos no guiador da bicicleta. A corrente estava constantemente a saltar, impossibilitando a minha progressão. Em terceiro lugar, o selim… Este deveria ter sofrido alguma alteração das suas formas anatómicas, pois as minhas nádegas não sofriam tanto ardor, como desde os primeiros dias de Angola.

Para criar algum alívio das áreas doridas, era obrigado a pedalar de pé. Contudo (e por seu lado) a corrente e o 3º prato estavam de relações cortadas impedindo a cada pedalada tivesse o rendimento devido.

A 2 dias de chegar a Maputo, estava condicionado a pedalar sentado, empregando uma pedalada redonda, de modo a avançar na viagem. Logo de seguida e aproveitado o balanço, levantava-me por breves instantes com o objectivo de aliviar as nádegas.

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A paisagem era agora constituída (maioritariamente) por plantações de milho e de cana-de-açúcar, sendo raro avistar uma árvore.

Fazia 1 hora de tempo, desde que o meu estômago recebera o seu alimento, quando comecei a sentir o pneu traseiro demasiado “fofo”.

Olhei pelo meio das pernas, para constatar que tinha debaixo de mim, mais um pneu furado.

Voltei a temer o pior, ou seja mais um corte inexplicável no lado interior da câmara-de-ar. Numa questão de milissegundos, passaram-me (novamente) pela mente todos os furos que já sofrera na viagem e quantos deles haviam sido “cortes internos”.

Desmontei o pneu num ápice, debaixo de um sol ardente que me queimava a pele e o coco, tentado controlar a curiosidade de descobrir a causa do furo.

Mais uma vez passava pelo ritual de inspeccionar tudo. Aro, pneu e câmara-de-ar para pouco depois… voltar a sorrir.

Desta vez, o furo era mesmo um furo. Era um furo “verdadeiro” de feitio arredondado e no lado rolante do pneu. Um furo provocado por um espinho, arame ou algo parecido, em vez de ser o misterioso corte no lado interno da câmara-de-ar e que já havia criado tantos cabelos brancos na minha cabeça.

Reparei o furo com uma felicidade demente e segui viagem.

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Queria recuperar algum do tempo perdido, mas tal tarefa era completamente impossível. A corrente continuava a saltar cada vez que eu impusesse o mais ínfimo esforço para aumentar a velocidade. Por diversas vezes, recorria à 1ª cremalheira com a 8ª engrenada nos carretos traseiros, de maneira que conseguisse avançar. O elevado estado de desgaste apresentado pela corrente, permitia-me pedalar com esta cruzada de modo a utilizar a 8ª e a 9ª, enquanto à frente seguia na 1ª cremalheira.

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As dores nas nádegas voltavam a dar sinal. Algo que não entendia muito bem a razão da sua origem, uma vez que tinha mais de 8.000Kms de calo Africano e que os dias de descanso no Bilene não haviam sido assim tantos que pudessem ter desabituado o meu corpo ao formato do selim.

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Fosse como fosse, certo era que entre os problemas da corrente, o furo, as dores no cóccix e a fome (que já começava a dar sinal), faziam com que a minha mente se mantivesse ocupada sem ter tempo para olhar para trás à procura do passado nostálgico.

Eram as 16h22 quando chego à vila de Manhiça. Dirigi-me ao restaurante Laurentina para acalmar um pouco o meu estômago e onde travei os primeiros contactos acerca de um lugar para pernoitar – Express Lodge Manhiça.

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Já instalado nos meus aposentos, efectuei umas inspecções ao estado das cremalheiras e corrente.

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Era o mesmo conjunto que havia saído de Luanda comigo por isso seria natural que não aguentassem muito mais. A grande questão colocava-se na possibilidade de não durarem até Maputo, obrigando-me a pedalar em relações muito desmultiplicadas ou mesmo a pé.

Fosse como fosse, estava confiante que haveria de chegar, nem que para isso tivesse que retirar alguns elos à corrente de maneira a que esta permanecesse mais esticada.

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Após de sessão de mecânica, refugiei-me num género de retiro budista para me mentalizar que dentro de algumas horas chegaria a Maputo e consequentemente seria o término da minha viagem.

Interiormente, realizava vários balanços acerca da preparação da viagem e dos mais de 8.000Kms já percorridos.

Longinquamente idealizava cenários para uma próxima destreza, ainda sem roteiro nem datas, mas com 167 dias de experiências já vividas.

E num pensamento mais aproximo da realidade actual, preparava a minha chegada a Maputo com o sentimento de objectivo alcançado e (já) não com o sentimento de “derrotado”, por não conseguir estender em mais nenhum dia esta magnifica experiência.

Aguardava agora, numa espécie de ansiedade contida, pela minha chegada a Maputo…

3 comentários:

  1. Entendo e concordo perfeitanente,com muita pena,digamos

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  2. Gostava de ter coragem e força para fazer essa travessia, confesso. Muitos parabéns.

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