Moçambique Fase II (Zero – Caia)

 

Cedo despertei, em parte devido à forte intensidade de luz que trespassava as janelas de rede mosquiteira e embatia com toda a força, nas finas paredes da minha tenda. Para combater a claridade que emanava por todo o lado, afoguei os meus olhos no escuro do saco cama. Mas pouco (ou nada) contribuiu para a continuação do meu pacato sono. Do lado de fora da minha tenda, começava a actividade diária do bar onde me albergara. Com algum rodopio, voltava-se a colocar mesas e cadeiras no lugar, iniciava-se o processo de limpeza e preparava-se o estabelecimento para receber os primeiros clientes… e eu a tentar dormir no meio do circo, perturbando tudo e todos.

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Pouco passava das 6h00, quando achei por bem mostrar ao mundo exterior que eu continuava vivo. Cumprimentei o empregado do bar, que surgiu espantado por detrás do balcão, e perguntei-lhe o que havia para pequeno-almoço.

- Não tem… - Respondeu.

- Não tem o quê? – Insisti.

- Não tem nada… - Esclareceu.

Posto isto, pedi apenas um jarro de água quente para que pudesse preparar as minhas papas Cerelac. Acabaria por conseguir um pão que havia sobrado do dia anterior e que, juntamente com as papas, daria alguma consistência ao meu estômago.

Nas minhas tranquilas horas de sono, meditara sobre o trajecto a seguir para a etapa do dia. Após analisar os prós e contras entre as duas opções vigentes,

a) Seguir para Morrumbala, visitar a ponte D. Ana e a Vila de Sena, para acabar em Caia (180Kms),

b) Seguir directamente para Caia (49Kms),

Concluí que a opção “a” era a que mais se adequava a todos os propósitos da minha viagem… No entanto a opção “b” trazia uma inexplicável tranquilidade, relativamente a vários factores que nunca consegui enumerar. Talvez a fobia de uma roda partida ou a aflição de encontrar um troço de areia, juntamente com o desgaste de toda a bicicleta, andassem a vaguear pelo meu inconsciente… levando-me (com algum custo) a optar por seguir directamente para Caia.

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Com as primeiras passadas (calçado) da manhã, comecei a sentir um estranho ardor junto ao tendão de Aquiles. Numa breve inspecção ao local da queixa, reparei que alguma bicheza havia causado dano à minha pele nesse mesmo local. A situação vinha a piorar cada vez que eu dava um passo, pois a sapatilha esmagava e cortava a bolha produzida pela picada do insecto (rastejante ou esvoaçante).

Eram as 8h20 quando decidi enfrentar a curta etapa até Caia.

Cedo reparei que as pernas que agora giravam os meus pedais, não eram as mesmas pernas que eu usara no dia anterior. Estas estavam frescas e prontas para pedalar, fazendo-me esquecer do abrasamento passado na última etapa.

Possivelmente movido pelo bonito céu azul que tinha diante dos meus olhos, ou pelo simples facto de saber que a etapa do dia seria mais curta que o habitual, sentia a minhas pernas a debitarem cada vez mais binário no centro pedaleiro, exigindo que eu lhes colocasse à disposição uma mudança mais longa (pesada).

 

Ao fim de 30 minutos de viagem, contava com 12Kms percorridos, o que colocava a minha velocidade média no magnífico patamar dos 24Kms/h!

No entanto, e com o passar do tempo, a média foi baixando gradualmente. Primeiro para 23Km/h, depois para 22Km//h… No entanto, a vontade de efectuar uns “ataques” nas subidas permanecia em alta, o que levava-me a abusar do estado das cremalheiras e da própria corrente da bicicleta. Por vezes, a meio de um “puxanço”, a corrente saltava dos dentes da pedaleira, fazendo com que os meus joelhinhos se estatelassem nas esquinas do guiador da bicicleta, o que obrigava-me a dar um nó na língua, para não soltar bem alto alguns vocábulos em português saudável.

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O ânimo da etapa do dia, contrariava em tudo a moral do dia anterior. Pedalava de sorriso encrostado no coração, carregado de curiosidade e ansiedade pelas coisas boas que esta viagem ainda me poderia proporcionar. À superfície do meu consciente, boiavam os mapas e rotas imaginárias para as próximas etapas, ainda muito antes de eu saber se havia estradas transitáveis (ou não) para chegar a qualquer um dos destinos a que me proponha.

Passavam 7 minutos das 10h00, quando avisto pela primeira vez os 2,3Kms de extensão da Ponte Armando Emílio Guebuza. A ponte, inaugurada um ano antes, ligava as duas margens do rio Zambeze, cuja travessia era anteriormente feita com recurso a batelões.

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Dada a proximidade a Caia (o destino final da etapa), resolvi gastar algum do meu tempo e visitar o antigo cais, onde era feito o embarque nos batelões.

De ambos os lados da antiga estrada, jaziam os restos de várias barracas, outrora pontos de venda dos mais diversos artigos e onde muitos dos viajantes saciavam a sua fome e sede, enquanto (des)esperavam pela sua vez para embarcar no batelão.

Desci calmamente a estrada agora abandonada, e que me levava em direcção à plataforma de atracagem dos batelões. À minha volta, uma calma fora do normal. A tranquilidade das águas do Zambeze enchia-me os olhos de contentamento. O silêncio envolvente começava a tomar conta do cenário que me rodeava, … mas entretanto fora interrompido por uma cavilha que resolvera espetar-se no meu pneu… traseiro.

A calma de espírito rapidamente saiu de cena. A minha pulsação voltou a subir, como se estivesse a fazer um picanço com um ciclista local. Em menos de 1 segundo, passei a conseguir ouvir tudo o que me rodeava. Ouvia o roncar dos veículos que atravessavam a ponte nova. Ouvia as mulheres a lavar roupa no rio. Ouvia as crianças a correr à minha volta e… ainda ouvia o ar a sair do meu pneu.

Saí da bicicleta à procura de mais cavilhas que pudessem atraiçoar o pequeno percurso de regresso à estrada N1… e acabei por concluir que a “minha” cavilha, era a única cavilha em toda a largura da estrada. Havia quase 20 metros de largura de alcatrão para eu passar com a bicicleta… e tinha logo que encontrar-me com o único prego das imediações!

Com um carregamento adicional de paciência, dediquei-me ao já tão repetido ritual de:

Tira ferramentas das malas, desmonta o pneu, remove câmara-de-ar, identificação do furo, colagem de remendo, secagem, teste de enchimento… falhou! Nova análise à câmara-de-ar, descoberta de novo furo (pois o prego trespassou a câmara-de-ar de um lado ao outro e quase que furou o aro da roda), colagem do segundo remendo, secagem, teste de enchimento… OK, colocação da câmara-de-ar e do pneu no aro, novo teste de enchimento… esperar… resultou!

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Entre reparar o pneu da bicicleta e afastar as moscas que teimavam em poisar na ferida que trazia junto do tendão de Aquiles, acabei por desperdiçar mais de 30 minutos.

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Valia-me a simpática companhia de 3 jovens, que não paravam de me fazer perguntas ou de levantar observações entre eles:

- Vê lá a bomba dele!

- Xiii! Vê lá o pedal dele!

- Aonde! Vê lá o “pineu” dele!

E assim sucessivamente com vários “Vê lá… isto ou aquilo… dele!”

Com a roda reparada e antes de regressar à estrada principal, despedi-me do Zambeze. Zambeze, o rio que séculos antes, inspirara tantos exploradores a cursarem pelo interior de África, movidos pelos mais diversos propósitos.

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O rio que mais me acompanhou ao longo de toda a viagem de bicicleta por terras Africanas. Viajámos juntos mais de 1200Kms, desde as zonas remotas entre Angola e Zâmbia até à fronteira com o Zimbabwe… Agora, voltávamo-nos a encontrar, 3600Kms depois, já na costa com o Oceano Índico.

A poucos metros de mim, várias mulheres lavavam a roupa nas margens do Zambeze, ignorando o aviso colocado metros antes.

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Na época dos batelões, seria natural que a bicharada (crocodilos e hipopótamos) mantivesse-se afastada das margens, devido ao barulho dos motores e às descargas menos agradáveis que as barcaças faziam ao rio.

Agora o prudente barulho dos batelões deixara de se ouvir, o que poderia fazer com que alguns espécimes aproximassem-se das margens. Coloquei a pertinente questão aos 3 jovens que mantinham-se ao meu lado, e a resposta não era muito diferente das outras já ouvidas:

- Não tem problema! …

- Mas os crocodilos e os hipopótamos não vêm aqui?

- Nada! Não tem problema! … Às vezes vem… mas pessoa não pode estar ali, senão é mordido…

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De regresso à estrada principal, percorri calmamente os 2,3Kms da majestosa ponte, até à margem sul do rio Zambeze. Do outro lado, uma pequena portagem obrigava os veículos motorizados a contribuírem para a manutenção da mesma.

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Umas centenas de metros mais à frente, encontrava-se do meu lado direito, o estaleiro do consórcio entre a Mota-Engil e a Soares da Costa (para a construção da ponte), já em fase de desmobilização.

Resolvi parar e apresentar-me aos poucos conterrâneos que ainda desempenhavam funções de reparação e desmobilização dos equipamentos. Dez minutos mais tarde, estava formalmente convidado a pernoitar nas instalações do estaleiro.

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Antes de me estabelecer no meu novo dormitório, resolvi visitar a vila de Caia que se situava a pouca distância do estaleiro. Percorri as várias ruas e ruelas da povoação que apesar de não ter estradas pavimentadas, apresentava vários sinais de restauro nos diversos edifícios governamentais.

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De regresso ao estaleiro, dirigi-me à gasolineira situada na N1. Uma gasolineira ao nível das melhores, com loja de conveniência, pagamento automático e máquina de café (expresso). No entanto nem cheguei a entrar na loja, pois o gerente teimou que eu não podia deixar a bicicleta perto da entrada do estabelecimento… e eu por meu lado teimei não deixava a bicicleta fora do meu alcance visual. Despedimo-nos à boa maneira portuguesa e retomei a estrada principal em direcção ao estaleiro da Mota-Engil e Soares da Costa.

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Acabaria por ficar um par de dias nas instalações do estaleiro do Caia por 3 razões:

Em primeiro lugar devido a condições climatéricas. Vá-se lá entender porquê, mas o S. Pedro resolveu brindar a região com uma boa e duradoura descarga de água, em plena época seca.

Em segundo lugar e não menos importante, eu tinha que planear a rota a seguir para as próximas etapas.

Por último, queria dar algum descanso e algum tempo de recuperação ao bocado de pele que me faltava no tornozelo.

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O planeamento das próximas etapas, era sem dúvida o ponto que me levava mais tempo e também aquele que mais me consumia o cérebro.

Com o aproximar a Maputo, eu queria tornar a viagem o mais duradoura possível e visitar o maior número de lugares possíveis.

Na lista dos próximos destinos, estava o Parque Nacional da Gorongosa, a cidade da Beira e o Chimoio. Para satisfazer a minha curiosidade, teria que programar muito bem os trajectos a percorrer, tentando evitar ao máximo circular por estradas repetidas.

A minha primeira escolha era a de seguir de Caia para o Parque Nacional da Gorongosa (Entrada Este) pelo trajecto assinalado a verde. Depois de visitar a reserva, prosseguiria para a Beira, onde voltaria a recalcular os restantes itinerários. O trajecto a verde, tinha tudo o que eu queria para as próximas etapas, ou seja, estrada de picada, pouco trânsito, meio rural etc. Em contrapartida havia outros 2 factores, de peso relevante, e que causavam uma certa relutância na aceitação desta alternativa.

Em primeiro lugar a proximidade ao Parque Natural e escassez de povoações, o que se traduziria na possibilidade de encontros com felinos.

Em segundo lugar, a recente descoberta que havia uma brecha de um palmo de comprimento numa das pistas dos travões do meu aro traseiro, o que impossibilitava-me de avançar para os radicalismos das picadas (iniciava-se a “Saga do Aro Traseiro – Parte II”).

A Adicionar ao problema do aro, a corrente da bicicleta apresentava sérios sinais de desgaste e demandava a sua substituição. Mas a minha “preguicite” aliada a uma boa dose de teimosia, achavam que a corrente ainda aguentaria mais uns quilómetros, para além dos 6.300 que já possuía.

Mapa

Após algumas horas de meditação, concluía que a alternativa seria continuar pela maçadora N1 até à entrada Oeste da Reserva Natural (trajecto vermelho – 262Kms) e posteriormente avançar directo ou para a Beira (trajecto azul – 188Kms) ou para o Chimoio (trajecto cinzento – 120Kms).

No final, rumaria a Maputo seguindo o trajecto a laranja.

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